di G. Paolo Quattrini
Metapsicologia e fenomenologia
Na relação de ajuda a teoria é fundamental à prática, no sentido que os conceitos explicam porque se faz o que se faz na prática, e assim a respalda. Se poderia dizer que a teoria está para a prática assim como a manga está para a panela: é difícil manejar uma panela sem a manga. Agora, há mil maneiras de se trabalhar com Gestalt-terapia: o que falarei, é da forma de trabalhar onde o ponto de partida é a palavra fenomenologia e tudo o que está por detrás desta palavra. Penso que a fenomenologia seja o ponto de onde Perls se afastou de Freud e começou a fazer algo diferente.
Apesar deste afastamento, a Gestalt e o enfoque freudiano não são duas coisas muito diferentes, são apenas duas faces da mesma moeda. A teoria do enfoque freudiano é a metapsicologia, que seria como a psicologia da face oculta da lua, o lado que não se vê, ou seja, uma psicologia hipotética. Na fenomenologia, pelo contrario, é fundamental encontrar-se com o fenômeno, enfrentar-se com o que se pode perceber, ver, sentir, tocar e assim por diante. Trata-se de privilegiar a atenção em um lado ou em outro.
Em toda psicoterapia o dar-se conta é um fenômeno fundamental: se a pessoa não se dá conta, nada acontecerá. O dar-se conta pela ótica do enfoque metapsicológico e o dar-se conta através do enfoque fenomenológico são, no entanto, vias diferentes: no enfoque fenomenológico é necessário co-dividir um fenômeno, e isso é uma realidade muito simples que refere-se à experiência da pessoa. Do ponto de vista metapsicológico este co-dividir é ao invés algo que passa através da teoria, que é validada pela autoridade do terapeuta. Desta forma, o enfoque fenomenológico na intervenção na realidade tem a força da experiência, e necessita muito pouco sentido de autoridade: a pessoa mesma se dá conta, através da própria capacidade de perceber. Ao mesmo tempo, uma vez que a pessoa apóia-se diretamente em si mesma, na sua própria capacidade de dar-se conta e na sua capacidade de reconhecer os fenômenos, não se desenvolve uma transferência com o terapeuta tão grande que logo tenha que ser elaborada pra não se constituir como um problema.
Imaginamos de dizer a alguém que se sente incomodo na situação porque projeta uma imagem da mãe numa pessoa: sim… bem… pode ser… eu acredito em você… Porém, se o terapeuta diz, por exemplo: você está falando com uma voz alegre, mas o conteúdo do que você diz é triste, este é um fenômeno. A pessoa pode fazer o que quiser com ele, mas não é convidado a acreditar nele. Não tem que ter uma autoridade sobre esta pessoa porque ela reconheça o assunto. É um fato. Nesse aspecto a Gestalt é diferente dos enfoques que utilizam o peso da autoridade: necessita um nível muito baixo de autoridade e um nível muito baixo de transferência. Esta é uma grande ajuda, porque muitas vezes os pacientes desenvolvem uma tão grande dose de transferência que logo se transforma numa neurose mais grave que a neurose inicial1.
Fenomenologia e Existencialismo.
Há dois séculos Kirkegaard inicia um novo caminho na história do pensamento. A pergunta filosófica por excelência até aquele momento foi “que é a Verdade”? Kirkegaard afirma em vez que a pergunta realmente significativa é “como quero fazer minha existência?” Hoje se pensa bastante em termos do “que quero fazer de minha existência”: esta pergunta é o fundamento do existencialismo, é no que se embasa este ponto de vista. Isto implica uma forte mudança de eixo: na ótica da pesquisa da verdade como absoluta, no encontro existe o pressuposto de um sujeito que conhece e um objeto que é conhecido (e, portanto, o outro é em todo caso um objeto). Ao contrário, o ponto de vista existencialista sustenta que todos os interlocutores são sujeitos, cuja especificidade e portanto, diversidade, deve ser respeitada.
Mas então, se cada um pensa a seu modo, como podem entender-se, posto que para se compreender necessita uma representação do mundo compatível a todos os interlocutores, e visto que a representação do mundo cada um a constrói em função de seus interesses? Esta pergunta tem uma grande importância existencial, porque ser compreendido por outros seres humanos é indispensável para a sobrevivência. Agora, para sobreviver é evidente a importância de saber operar com os fenômenos em que a realidade se manifesta. A união da Fenomenologia e do Existencialismo faz uma teoria do conhecimento que reconhece a realidade através da percepção e respeitando os fenômenos como palavras bases do pensamento. Este conhecimento do universo pelo que é percebido, comporta que podemos nos orientar apenas baseando-nos em que cada um sente e o efeito que lhe faz. E assim, o pensamento existencialista em vez de “que es a verdade”, pergunta ” o que é que tem valor, e o que é que não tem?” sendo o valor uma característica dos fenômenos mesmos, e não dependendo da interpretação deles.
Nesta ótica a diversidade do sentir tem que ser aceitada, e o encontro com o outro não pode ter, portanto, como ponto de discernimento o que é justo e o que é equivocado. Em um enfoque existencialista não se pode falar mais de uma verdade objetiva que prescinde do sujeito, mas apenas de verdade intersubjetiva, que inclui e respeita as diferenças dos sujeitos implicados no ato de conhecimento. Como dizer que não existe uma verdade independente de mim e do outro: no existencialismo a verdade está na interação entre eu e tu. Este é o acontecimento concreto: eu sinto algo, e este meu sentir faz um efeito a você e a tal efeito eu reajo com um outro sentir, etc. Constrói-se assim uma realidade dinâmica, que circula, e que denomina-se como circulo hermeneutico.
A verdade objetiva é estática, a visão fenomenológica, pelo contrário, respalda um modo de ser dinâmico, onde o encontro ocorre sobre as diferenças. A pesquisa da verdade objetiva prefere o encontro sobre as igualdades (pelo menos no pensamento). Na verdade intersubjetiva os seres humanos são capazes de entender um ao outro pelo encontro de verdades diferentes, cada um mantendo sua verdade, que manifesta-se tal como é ao interlocutor, que contesta com sua reação, fechando por sua vez o círculo e fazendo uma ponte entre os dois. Cada ser humano é um mundo com suas diferenças e o trabalho próprio da relação de ajuda consiste em encontrar as diversidades e não uniformizar o outro para si e ir, por assim dizer, de férias para outros lugares, diferentes dos pessoais, para experimentar estar com a diversidade do outro. No pensamento tradicional as diferenças se espelham fundamentalmente por meio do justo/equivocado, com o objetivo último de descobrir a verdade, que transforma as coisas com função curativa e lhe desvela anulando as meras aparências. Na Fenomenologia o fenômeno é o fenômeno, este é este e não é aquele, não tem lugar para interpretações e referências.
Mas se o fenômeno é o fenômeno e não existe uma verdade transformadora, em um marco fenomenológico como ocorre a transformação? Qual é o instrumento operacional deste pensamento, se tudo é o que é? O instrumento que transforma é a responsabilidade, que implica a possibilidade de escolhas. Possibilidade que está ali, independentemente do cliente e do operador: é a realidade mesma em seu ser e traz a luz que oferece. A liberdade consiste em escolher, e a tarefa, a função do operador, é ajudar o outro a perceber que existem possíveis opções, a dar-se conta de que pode escolher. Neste quadro, que forma uma nova configuração, o operador testemunha a escolha do cliente. Como se faz concretamente para intervir no âmbito de um pensamento que acolhe o fenômeno, quer dizer no âmbito de um pensamento existencialista-fenomenológico? O instrumento utilizado na Gestalt é o contato, onde por contato se entende uma relação transformativa.
Espiral de contato
O que faz a eficácia deste tipo de relação são quatro operações: sentir, pensar (querer), fazer, averiguar. Estes quatro passos constitutivos da espiral de contato se pode fazer consigo e com os outros dentro de qualquer situação: é o que se chama em Gestalt, “continuum de consciência.” Se não me dou conta do que sinto não posso fazer algo com isso: não sentir faz toda diferença. O primeiro ponto para existir é sentir: no momento em que sinto, por exemplo, penso uma gama de possibilidade de coisas que quero. Em todo caso, tudo fica suspenso enquanto não decido o que fazer para conseguir o que quero e na realidade a transformação não se realiza de verdade até que, afinal, não averiguo que efeito faz sobre mim o que eu faço. A espiral de contato aparece tal como um instrumento para orientar-se pelas microescolhas cotidianas no labirinto da vida.
“Estar em contato” com outra pessoa na Gestalt quer dizer ter um tipo de relação eficaz, quer dizer, que tenha algum efeito sobre os interlocutores: uma relação que não deixa as coisas como eram antes, uma relação que transforma. Como a lógica se diz formal porque é definida pelo respeito da sucessão formal das proposições lógicas (veja por ex. o silogismo), então também o contato é definido aqui pelo respeito da forma de seu futuro: está em contato quem nunca se dá conta de que sente, escolhe o que quer, decide o que fazer e logo, tendo-o feito, verifica o que sente e não está em contato quem evita também apenas um passo. O contato é definido pois pela modalidade com que ocorre: decompondo a mecânica do contato em fases, podemos imaginar uma espiral, a espiral de contato, que se poderia delinear com
1. escutar o que sinto;
2. decidir o que desejo (a propósito do que sinto);
3. decidir o que faço (a propósito do que desejo);
4. averiguar o que sinto, havendo-o feito.
Cada uma destas fases pode corresponder a um ato de interrupção, no caso em que instâncias contrárias se unam para impedir o contato. São os quatro passos constitutivos da espiral de contato que permitem ver sejam as possibilidades de escolha, sejam as consequências.
Um exemplo prático. Suponhamos que em uma pessoa se ativa um impulso agressivo por alguém, sem, porém, desejar um confronto:
1) pode não dar-se naturalmente conta da emoção, não dando-lhe forma e não chegando tão pouco a segunda fase, quer dizer, a
2) decidir o que quer. Chegando aqui frequentemente as pessoas conseguem imobilizar-se afirmando que não sabem o que querem: mas para querer faz falta imaginar opções (que é uma operação criativa e consciente), e logo escolher! Uma escolha comporta em assumir a responsabilidade das consequências e cada escolha tem suas consequências específicas. Logo que a pessoa escolhe o que quer, é igualmente ineficaz se não decide o que fazer: desejar algo não basta para tê-lo. A eficácia do procedimento é conectada inevitavelmente ao conhecimento do interlocutor: para decidir perseguir um objetivo pela ação faz falta conhecer o interlocutor. Aqui o conhecimento por diferenciação (você é diferente de mim) ajuda relativamente: saber como é diferente o interlocutor não diz muito sobre o que faz efeito sobre ele. E em troca, a intuição, quer dizer, o conhecimento por participação (lhe reconheço porque também eu de alguma maneira sou igual: “Sou um homem, e creio que nada do que é humano me é estranho”) dá indicações fundamentais: se olho o mundo com seus olhos me dou conta que efeito lhe faz o que faço. Se logo depois de colocar-se nos passos do outro e houver imaginado várias possibilidades decide o que fazer, todavia não basta para chegar ao fundo: necessita, evidentemente, que a este ponto, depois de tê-lo feito,
3) averigue escutando se confirma suas decisões por meio da experiência. Apenas assim se pode imaginar que a relação seja deveras funcionante e que existe contato. Aqui, a expressão contato, na realidade, é uma metáfora, que usa o contato físico para explicar algo que ocorre na realidade sobre um plano e numa maneira diferente: no contato físico os fenômenos ocorrem em um continuum que o contato obra entre objetos, como quando permite a eletricidade de passar, no entanto o contato em um sentido gestáltico é uma situação onde os fenômenos se manifestam como invenciones na solução de continuidade que existe entre os interlocutores, como quando se manifesta una atmosfera que se perceve sensorialmente a pesar que não seja um objeto.
1 Vide caso recente do psicanalista assassinado pela paciente em São Paulo.