Sobre o sentido e lugar do Contato
e de sua concepção na concepção e método
da Gestalt Terapia
Di Afonso H Lisboa da Fonseca, psicólogo.
Laboratório Experimental de
Psicologia e Psicoterapia Fenomenológico Existencial.
affons@uol.com.br
http://www.geocities.com/eksistencia/
Este ensaio visa desenvolver uma interpretação da concepção e da importância da concepção de Contato na formulação e método da Gestalt Terapia, de um ponto de vista fenomenológico existencial. Em particular, a partir da perspectiva da intencionalidade da vivência de ser no mundo.
E lá vou eu, gesto no movimento…
Paulo Leminsky
Uma preciosa contribuição de Fritz Perls, e da tradição que se prolonga na Gestalt Terapia, decorre da sua dedicação, teórica e prática, à questão do que se convencionou chamar de Contato. Do contato e do como do contato, na condição humana, na disfunção, no que metaforicamente podemos entender como “adoecer”, e na concepção e prática da psicoterapia.
Originalmente de cunho eminentemente fenomenológico, e existencial, a noção de Contato ficou algo prejudicada, não obstante, no desenvolvimento da Gestalt Terapia.
Aparentemente, pelo próprio nível, e conflitos, do desenvolvimento da Fenomenologia, e do Existencialismo, que lhe embasavam. Igualmente, em função de conflitos culturais da cultura da Humanidade, na sua época e lugares. E, em particular, pelas próprias limitações de Perls no trato com abordagens filosóficas que lhe eram tão importantes, e que de um modo decisivo contribuíam para a originalidade e fecundidade de suas práticas e teorizações. Perls era um médico. Uma outra dimensão sua era a de um artista expressionista experimental. Desta surgiu, efetivamente, a sua prática e o seu desenvolvimento da Gestalt Terapia. Mas, em se tratando de uma terapia, o modelo médico, no qual se embasa, inclusive, a prática e concepções psicanalíticas, de onde vinha Perls, teve um peso grande, a limitar o desenvolvimento do caráter e teorização especificamente fenomenológico existenciais da Gestalt Terapia de Perls.
Neste sentido, cumpre compreender as limitações de Perls. Não se tratava de um filósofo, fenomenólogo, ou mesmo de um psicólogo, mas de um médico, situado na ótica do empirismo objetivista, vigorante no modelo médico. Por mais que a Psicologia Organísmica Gestáltica de Kurt Goldstein, e outras influências fenomenológico existenciais houvessem amaciado, corroído, comprometido, e mesmo subvertido, o objetivismo deste empirismo oriundo do modelo médico.
Podemos, e precisamos, hoje em dia, creio, retornar a, e repensar, a concepção de Contato, especificamente a partir das bases da Fenomenologia e do Existencialismo. Em particular, com uma perspectiva que Perls não poderia ter em sua época. No sentido de continuarmos desdobrando a fecundidade da noção de Contato para a concepção e exercício experimental da condição humana, para a concepção de distúrbios, e para a concepção e prática de condições e recursos terapêuticos.
Para, inclusive, vermo-nos livres da omissão; ou, inversamente, vermo-nos livres da avalanche de bobagens que se fala e escreve a respeito de tão importante noção.
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Contato é especificamente a vivência de atualização de possibilidades, (a partir da projetatividade pré-compreensiva destas) ao nível da vivência de ser no mundo. O desdobramento do contato é a dinâmica vivencial hermenêutico dramática, fenomenológico existencial experimental, de desdobramento das possibilidades que se dão, ontologicamente, na vivência de ser no mundo
O contato dá-se e desdobra-se, especificamente, como atualização de possibilidades ao nível da vivência de ser no mundo.
A vivência de ser no mundo, o vivido, dá-se como vivência, fora, portanto, do modo de ser em que vigoram a relação sujeito-objeto.
Como desdobramento e atualização de possibilidade, por outro lado, a vivência de ser no mundo constitui-se como presentificação poiética, fora das relações de causa e efeito.
Quando, em nosso modo de ser, nos afastamos do desterritório da vivência fenomenológico existencial de ser no mundo – vivência pré-reflexiva e pré-teórica, pré-conceitual, presentativa e não re(a)presentativa — e do contato, portanto —, constituímo-nos, então, num modo de ser no qual vigora a dicotomia e relação sujeito-objeto, e as relações de causa e efeito.
Assim, o mundo e os seres do mundo podem ser objetos, e nós, sujeitos. Condição para que os objetos possam se constituir em sua utilidade, e serem efetivamente usados pragmaticamente.
Nos momentos do vivido de ser no mundo, no processo do contato, estamos num modo de vivência no qual compartilhamos com o mundo um âmbito em que se diferenciam consciência e mundo, eu e realidade objetiva, sem que se dicotomizem em sujeito e objeto, na medida em que se dão como vivência fenomenal intencional. Este âmbito é um âmbito poiético, de brotamento da realidade e atualização, a partir das possibilidades de ser no mundo, vividas fenomenalmente, no qual não vigoram as polarizações e relações sujeito-objeto, nem as relações de causa e efeito, nem as relações de utilidade.
Ao nível deste modo de ser que é a vivência de ser no mundo, constitui-se assim o possível, a possibilidade em nossa vivência. Possibilidade que se projeta em seu processo de atualização e desdobramento, constituindo o que Heidegger1 entendeu como interpretação.
Entendo o Contato como o processo de desdobramento de possibilidade como vivência de ser no mundo. O Contato é a interpretação, o Contato é hermenêutico.
De modo que Contato é, eminentemente, vivência de ser no mundo. Ou seja, desdobramento de possibilidade ao nível da vivência de ser no mundo.
Existe dialogicidade e inter ação no Contato. Mas não existe uma objetividade da vivência de contato, nem uma pragmática objetivista do processo do contato. O contato se dá propriamente pela experimentação fenomenológico existencial. Experimentação vivencial. Vivência, que se encontra, como tal, fora das relações sujeito-objeto, e das relações de causa e efeito, sendo da ordem da hermenêutica poiética.
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Assim, o contato se dá, e se desdobra, como vivência fenomenológico existencial intencional do ser no mundo. De modo que não há relação sujeito-objeto, nem relação de causa e efeito, ao nível da fronteira de contato, do contato, e do seu desdobramento, do ajustamento criativo e da auto regulação organísmica…
No modo de ser em que se dão a dicotomia sujeito objeto, as relações de causa e efeito, e a utilidade, dá-se, especificamente, não o contato, mas a sua impossibilidade e impossibilitação, a interrupção do contato e de seu desdobramento.
Como observamos, um dos principais limites das formulações de Perls está numa certa ambigüidade e carência com relação ao seu fundamento fenomenológico e existencial. Herdeiro indiscutível, num certo sentido, da Fenomenologia Hermenêutica Existencial da tradição de Brentano, e das Filosofias da Vida de Nietzsche e Dilthey, Perls, aparentemente, encontrava-se tolhido nesse sentido por uma outra vertente de sua formação: a de um background médico, calcado num empirismo objetivista, diverso do empirismo especificamente fenomenológico da tradição fenomenológica e ‘existencialista’ da Fenomenologia e da Filosofia da Vida.
Ainda que em sua prática Perls fosse menos ambíguo, esta ambigüidade configurou-se nas formulações e indicações de sua concepção de Contato. No limite, esta ambigüidade vai aparecer na formulação de uma concepção de contato que é eminentemente fenomenológica e existencial2, ao mesmo tempo em que se perde na perspectiva de uma concepção objetivista e não fenomenológica de contato, como contato entre um sujeito e um objeto, ao nível da Fronteira de Contato.
O objetivismo pragmatista do meio norte americano em que a Gestalt Terapia se desenvolveu perpetuou a ambigüidade. Ou tendeu freqüentemente a resolvê-la no sentido do objetivismo pragmatista, afastando muitas vezes a Gestalt Terapia norte americana de sua originalidade fenomenológico existencial.
Em Gestalt Terapia as noções são em geral confusas quando se busca precisar a concepção de Contato ou de seu processo. A concepção se perde em geral num confusional, que não raro dá margens a interpretações que seriam cômicas, se não fossem catastróficas. Isto decorre, naturalmente, das buscas e tentativas de explicação de noções que são eminentemente fenomenológicas e existenciais sem que, para isso, se recorra às perspectivas da Fenomenologia e do Existencialismo, tentando-se, às vezes, evitá-las e contorná-las assepticamente… O resultado é o que vemos…
As limitações de Perls somaram-se a uma profunda e duradoura incompreensão, e até aversão — no âmbito da cultura norte americana, para onde foi transplantada, e onde se desenvolveu a Gestalt Terapia – do e pelo caráter fenomenológico e existencial experimental do seu empirismo original. Este confundido, de um modo geral, de modos mais ou menos ingênuos, com a perspectiva de uma experimentação e de um empirismo objetivistas.
Fenomenológicos e existenciais, como observamos, o Contato e o processo de seu desdobramento não se dão, ao nível da dicotomização sujeito-objeto. A sua materialidade objetiva, ou subjetiva, é derivada. Da mesma forma que não se dão no âmbito do modo de ser das relações de causa e efeito. O contato e o seu desdobramento se dão fenomenológico e existencialmente, ao nível de vivência de ser no mundo, que é eminentemente intencional. De diferente dimensão, portanto, da ordem da dicotomização sujeito-objeto.
O aparecimento e a vigência do sujeito, e do objeto, e de sua dicotomização; a possibilitação das relações de utilidade, e de causa e efeito, representam especifica e propriamente um afastamento do modo de ser do contato, um afastamento do modo de ser da vivência de ser no mundo, e do processo de seu desdobramento como desdobramento de suas possibilidades.
Ou seja, o modo de consciência, reflexivo, ou comportamental, que permite a diferenciação sujeito-objeto, e as relações de causa e efeito, é uma dimensão, exatamente, da impossibilidade ou da impossibilitação do contato, e do seu desdobramento. Ainda que seja, também, evidentemente, uma dimensão natural do ritmo do ser da existência.
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Igualmente, a Fronteira de Contato não se dá como relação sujeito-objeto. A Fronteira de Contato é a tensão vivencial da projetação da possibilidade: projatação do pré ser compreensivo da possibilidade.
Impressionado, talvez, pelos desenvolvimentos iniciais da Citologia, a concepção de Perls de Fronteira de Contato parece ter tomado como paradigma básico o modelo de concepção da membrana celular. A membrana celular que se constitui a partir da influência dos meios extra e intracelular, como organização de elementos que pertencem a ambos os meios.
A questão da fronteira de contato, não obstante, não é e não cabe em sua especificidade nesse paradigma citológico, biológico e objetivista. A fronteira de contato é, evidente e especificamente, fenomenológica e existencial, e não biológica. Oriunda, certamente, na problematização de Brentano relativa à questão das fronteiras entre as partes e o todo; e nas questões relativas ao possível e a sua atualização. Evidentemente que somos o que entendemos como seres biológicos e fisiológicos. Mas fenomenológico e existencialmente vivenciais e vividos como ser no mundo.
A Fronteira de Contato, que se dá no âmbito próprio da intencionalidade da vivência de ser no mundo, não é exatamente, nem de modo algum, a fronteira entre um sujeito e um mundo, entre sujeito e objetos, por mais sutil que fosse a conexão e integração. A fronteira de contato, o contato, e o seu desdobramento, como se dão ao nível da intencionalidade de ser no mundo, não são da ordem da interação entre um sujeito e um objeto.
Fenomenológica e existencial, a Fronteira de Contato é, assim, a tensão entre o ser no mundo e o seu possível. Por um lado, a pressão (do mundo e do sujeito constituídos, decaídos), e a ex-pressão da força da possibilidade, no desdobramento do ser no mundo, poiesis (ou seja, ‘ger ação’ e ‘re gene r ação’) do ser no mundo. E, na verdade, derivadamente, poiesis do mundo e do sujeito constituídos, da realidade. Experimentados enquanto tais, em si, de modo diverso do modo da vivência de ser no mundo, do contato, e do processo de seu desdobramento.
Num sentido mais próprio, então, a Fronteira de Contato dá-se, assim, não como uma articulação sujeito-objeto, mas como vivência de tensão dialógica entre, (no âmbito entre, inter, inter pré ação, inter ação), entre, a vivência de ser no mundo e a atualização da(s) possibilidade(s) de ser, atualização de um pré-ser, que lhe é inerente. Tensão, no âmbito vivencial, entre a possibilidade e o seu desdobramento, entre a possibilidade e a sua interpretação.
Assim, o processo do contato, e do seu desdobramento (interpretação), configura-se eminentemente como um processo fenomenológico existencial — dialógico, hermenêutico e poiético — de tornar-se o que se é enquanto possibilidade, ao nível da vivência de ser no mundo. A ato-aliz-ação de um pré-ser-se no mundo, imediatamente dado como possibilidade na vivência de ser no mundo, um processo de engendramento e de atualização de possibilidades de ser a cada momento ontologicamente inerentes, enquanto tais, ao ser no mundo. A Fronteira de contato é a tensão da possibilidade de ser, em seu movimento de ato ação.
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Contato (ser no mundo, possibilidades e pré-ser-se) e o seu desdobramento (interpretação fenomenológico existencial experimental), hermenêutica experimental, (situação hermenêutica, experimentação fenomenológico existencial).
Como Perls3 indicou, o contato é a realidade mais básica, que nos é dada como a própria vivência da condição de ser no mundo, entranhada, inerente e ontologicamente, de possibilidades de ser.
Fenomenológico existencialmente, enquanto vivência, não seria o contato, a vivência de ser no mundo, subjetivos, e carentes de mundo?
Precisamente, não! Porque se dão, especifica e propriamente (como nosso modo de ser mais básico), no âmbito dialógico da intencionalidade no qual sujeito e mundo correlacionam-se co-originalmente, anteriormente a qualquer possibilidade de separação. No vivido, na vivência de ser no mundo, no contato, nós mesmos e o mundo estamos inevitavelmente presentes, e co-originalmente articulados.
Isto significa que nos momentos de vivência deste modo de ser, não se dá a dicotomia sujeito/mundo (objeto).
A possibilidade, o pré-ser-se do ser no mundo, a ato ação, atoalização, são, assim, precisamente, possibilidade e pré-ser-se do ser no mundo. Envolvem o que seriam (e que são, enquanto afastamento) o sujeito e o mundo/objeto, enquanto tais. Mas não são possibilidades respectivas do sujeito em si, e/ou do mundo/objeto em si, ou de uma interação de suas instâncias respectivamente ensimesmadas.
Quando mudamos, na atualização, desdobramento, da possibilidade de ser, na atualização do pré-ser-se do contato, e de seu desdobramento, somos ser no mundo, em vivência de emergência de ato ação, em mudança, em desdobramento de possibilidade. Vivência de ato ação de emergência momentânea, rítmica, cíclica, regular, enquanto tal. De diferente dimensão, e que não comporta a dicotomia sujeito/objeto (mundo).
Quando aparecemos sujeito, quando o mundo/objeto aparece em si, como tal, já não estamos mais, no momento, momentum, rítmico, cíclico, regular em sua constituição, do processo do contato na vivência de ser no mundo, e de seu desdobramento.
O contato envolve, assim, um mergulho na vivência do pré ser do possível propulsivo, imediata e compreensivamente presente e emergente na vivência de ser no mundo. Mergulho a que chamamos de ex peri ment ação. E um desdobramento ativamente vivencial de suas forças de possibilitação, a que chamamos de interpretação. De modo que, realizando assim o hermenêutico da nossa condição humana, criamos a nós mesmos, as nossas condições, e ao mundo que nos diz respeito, numa hermenêutica experimental, poiética.
A Gestalt Terapia propõe-se a ativar esta dimensão da condição humana, como logos metódico de potencialização de nossa criatividade existencial.
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O contato, o seu desdobramento, e a integridade e integração corpo/mente, self/mundo externo. Atualização. Espontaneidade. Ajustamento criativo. Auto regulação. Crescimento.
Da mesma forma, ao nível próprio da intencionalidade da vivência fenomenal de ser no mundo, de suas possibilidades e desdobramentos, o contato e o seu processo de desdobramento não se dão ao nível de uma dicotomização corpo/mente. E igualmente não se dão ao nível da dicotomização self/mundo externo4. Ou seja, ao nível próprio da vivência de ser no mundo, de suas possibilidades, possibilitações e desdobramentos (interpretações); ao nível do contato e do desdobramento de seu processo, dão-se uma integridade, uma integração gestáltica e organísmica, e fruição de corpo-mente, self-mundo externo. Ou seja, não vigora nesta dimensão uma dicotomia corpo-mente e self-mundo externo…
À medida que se desdobra o processo do contato, as dicotomias corpo/mente, self/mundo externo tendem a reduzir-se e a dissiparem-se, na absorção própria e especificamente dialógica (pré-reflexiva, presentativa, antes que re apresentativa), da vivência fenomenal (intencional) de ser no mundo, da ‘ato ação’ espontânea, na qual naturalmente integram-se e dialogicamente dançam self-e-mundo externo, corpo-e-mente. .
Pense numa dança, a dois, ou não, interpretada com entusiasmo…
A momentaneidade da vivência da interpretação, do dançar, ou seja: a momentaneidade da interpretação, hermenêutica, desdobramento, poiese, de suas possibilidades — enquanto desdobramento de processo de contato — constitui-se, própria e especificamente, como a momentaneidade de uma redução da dicotomização corpo/mente, e absorção vivencial do vivente dançante (de cada um dos parceiros). Momentaneidade de uma redução da dicotomia entre os dois parceiros como entes isolados em si. E redução da dicotomização entre ele(s) — e o ambiente, e o chão, e os sons da música, e a gravitação… — que coalescem na dialógica tensional das diferenciações em ato, na interpretação, hermenêutica, do desdobramento das possibilidades do contato enquanto ritmos dançantes.
E, de passagem, enfatizando o valor da afirmação da intensificação da interpretação da força do possível, perecível, diria Nietzsche, na fala de Zaratustra:
O passo de cada um revela se ele se encontra já no seu próprio caminho. Vede-me, portanto, caminhar! Mas aquele que se aproxima do seu fim… esse dança.
E, na verdade, não me transformei em estátua, ainda não estou entorpecido, pesado, petrificado, colocado como se fosse uma coluna; gosto da corrida veloz.
E, ainda que na terra haja pântanos e uma profunda tristeza, aquele que tem os pés leves corre por cima da lama e dança como sobre gelo polido.
Corações ao alto, meus irmãos, ao alto, ainda mais alto! E não esqueçais as pernas! Levantai as pernas, bons dançarinos, e, melhor, ainda: sabei aguentar-vos sobre a cabeça!
(…)
Mais vale ainda ser louco de felicidade do que louco de infelicidade, mais vale dançar pesadamente do que arrastar a perna. Aprendei, portanto, comigo, a minha sabedoria: mesmo a pior das coisas tem dois lados bons.
Mesmo a pior das coisas tem boas pernas para dançar: aprendei, portanto, vós próprios, homens superiores, a manter-vos direitos sobre as vossas pernas!
Esquecei, portanto, a melancolia e toda a tristeza da gentalha!
(op. cit., pp. 294-5)
“E que por nós seja considerado perdido o dia em que não dançamos! E que por nós seja considerada falsa a verdade que não é acompanhada por uma risada!”
(op. cit. p.209)
A vivência do contato e do seu desdobramento implica sempre neste aleviamento na redução da dicotomização, e desenvolvimento de uma integração momentânea e diferencialmente tensa, entre corpo/mente, self/mundo externo. Vivência que é poiética, hermenêutica, regeneradora, e potencialmente alegre, por sua promoção de uma super abundância de forças…
Momentânea a integração — ainda que de rítmica e de vital presença em nossa existência –, as dicotomizações corpo/mente, self/mundo externo; e/ou o desenvolvimento momentâneo, circunstancial, de uma integração difícil, de uma disintegração, são próprios de nossa cotidianidade, na medida em que o modo de ser no mundo da vivência é momentâneo e circunstancial. Vivência de intensidades e de intensificações, de mudanças e transformações, na medida em que atualiza possibilidades, a vivência de ser no mundo, a vivência do contato não poderia perdurar como modo de ser. De modo que a nossa cotidianidade se configura em sua normalidade como modo de ser dela diverso. Distanciadamente da vivência de ser no mundo, distanciamento, descanso, num certo sentido, do processamento do contato e do seu desdobramento.
Os momentos desta vivência integrada corpo/mente, self/mundo externo, na interpretação, no desdobramento das possibilidades de ser do ser no mundo, no desdobramento do contato, permite uma otimização da criatividade, que pode, existencialmente dar-se então como ajustamento criativo, e como auto regulação organísmica, redundantes no que Perls5 veio a chamar de crescimento.
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Momentaneidade do afastamento do contato, dificuldades no desdobramento do contato, desintegração corpo/mente, self/mundo externo, funcionamento mental, mente (consciência reflexiva), deliberatividade (arbitrariedade).
Assim, por dentro de uma cotidianidade não fenomenológica, não contactante, somos latentemente ser no mundo, contato, como nossa realidade (realiz ação, atu ação) ontológica mais básica. Latência esta impregnada de possibilidades de ser, sempre dispostas à atualização, e fazendo-o, efetivamente, nas oportunidades de nosso modo atoativo de ser.
Mas as possibilidades, em seu pré-ser-se e desdobramentos atoalizantes, têm os seus ritmos e processamentos próprios. Seus critérios, dificuldades, potencializações, facilitações, oportunidades.
Emergem, configuram-se, constituem-se, adensam-se, pro-põem-se orgânica e paulatinamente, em sua vontade, força, projetativa, em particular a partir dos movimentos de nossa ação. Até os momentos em que estão maduras, prestes a reivindicar a sua ato ação, a sua atualização, a sua interpretação, a sua contact-ação.
De modo que, ainda que existamos em contato, vivenciado, própria e especificamente, ao nível do nosso modo de ser de nossa vivência de ser no mundo, como nossa condição ontológica mais básica, o desdobramento do contato, da atualização das possibilidades de ser, são cíclicos, paroxísticos, e momentâneos, em seus momenta de manifestação, a partir da latência crescente de suas possibilitações.
No distanciamento, na insensibilidade e dessensibilização para o nível da vivência de ser no mundo, estamos distanciados desses momenta da possibilitação, e da movimentação da atualização do contato/possibilidades de ser.
Este afastamento da vivência de ser-no-mundo/contato e de seu desdobramento, significa uma abstração deles, estão suspensos, ‘inter ditos’, na verdade ‘inter des ditos’, ou até ‘inter dis ditos’.
Na medida em que a sua concretude vivida é da ordem da vivência fenomenal pré-reflexiva, ‘present ativa’, imediata, intuitiva, ‘atu ativa’, a sua abstração significa a abstração desta vivência. E, em conseqüência, o desenvolvimento da ‘re flexão’, da consciência re flexiva, re(a)presentativa, o desenvolvimento, como tal, da mente e do mental. Ou o desenvolvimento do comportamento e do comportamental, domínio de ser do habitual e do mecânico, do ‘re petitivo,’ com a consciência dessensibilizada e diferente do modo de ser do domínio fenomenológico eksistencial das possibilidades de ser e das possibilitações do vivido.
Abstração, este modo de ser, o que é abstraído, suspenso, é a concretude, a concrescência, do vivido do ser no mundo, integridade e integração (que é mais do que a soma das suas partes) do que, na re(a)presentação da consciência reflexiva, teórica, conceitual, explicativa, aparece como dicotomia mente-corpo, self-mundo externo, sujeito-mundo(objeto). O que é abstraído é a vivência de ser no mundo, somente na qual o possível é possível, e se desdobra.
Afastando-nos do modo de ser da vivência de ser no mundo, podemos, assim, evitar o desdobramento do contato, como evitação do desdobramento das possibilidades de ser que lhe são inerentes, na intencionalidade da vivência de ser no mundo.
Mas não podemos evitar sermos contato, como nossa condição mais básica, latente e sempre acessível no modo de ser da vivência. Podemos nos afastar desse modo vivido de sermos, e do seu desdobramento. Mas não podemos optar pela não existência de nosso modo vivido de ser no mundo. Podemos evitar o desdobramento do contato, mas não podemos evitar o contato enquanto possibilidade, força de vir a ser.
Podemos, assim, afastarmo-nos de nosso modo de ser da vivência de ser no mundo – basta dedicarmo-nos à reflexão e ao comportamento, mecânico e repetitivo, sem o engendramento do novo, à objetivização. Afastarmo-nos assim do contato, e da possibilidade do desdobramento de suas possibilidades. Mas não podemos abstermo-nos de sermos contato, como dimensão ontológica de nossa condição existencial mais básica. Podemos evitar o desdobramento das possibilidades de ser inerentes ao ser no mundo: podemos nos recusar ao, ou evitar o desdobramento do contato, como recusa e evitação do desdobramento das possibilidades de ser inerentes ao ser no mundo. Mas não podemos evitar sermos contato, na intencionalidade da dimensão mais básica de nossa existência como ser no mundo. Não temos, ontologicamente, a opção de evitar o contato, e enclausurarmo-nos na mônada subjetiva.
Regularmente, o ritmo da existência dá-se, quantitativamente no modo de afastamento do contato. Qualitativamente a emergência dos momentos fenomenais criam e recriam, pela atualização de possibilidades, o ser de nossa existência.
O afastamento naturalmente reversível do modo fenomenológico existencial do vivido de ser no mundo, o afastamento do contato, este afastamento da dramática da interpretação das possibilidades vividas de ser no mundo/contato, é momento natural e saudável de retração e de repouso, momento natural também do ritmo do processo de adensamento e de potencialização das possibilidades de ser/contato.
Nesse modo de ser do afastamento, em particular, pode se constituir a reflexão e o comportamento. O provimento de dimensões de nossa vida que requerem o modo reflexivo ou o modo comportamental de funcionamento
Naturalmente reversível na saúde, o prolongamento deste afastamento inevitavelmente implica, todavia, na fragmentação partitiva progressiva do vivido, fragmentação do modo de ser da vivência, da integridade e da integração da totalidade ‘totalizativa’ da vivência de ser no mundo (que é mais do que a soma de suas partes). Implica na fragmentação do vivido da integridade e da integração corpo-mente, self-mundo externo.
Susta-se, na tendência ao afastamento do modo de ser vivencial do contato e de seu desdobramento, a integração e a integridade vividas no contato.
A reversibilidade, não obstante, aos momenta da vivência de ser no mundo é natural, e faz parte de nossa saúde, e capacidade para a auto regulação e para o ajustamento criativo, no chamado campo organismo-meio. Não se atualizando, todavia, esta reversibilidade, o corpo e a mente, o self e o mundo externo, o sujeito e o mundo (objeto), progridem em sua fragmentação e disintegração da integração e da integridade da vivência do contato no ser no mundo.
O afastamento da dramática da vivência do contato, da interpretação, desdobramento, das possibilidades vividas de ser no mundo, é, assim, momento natural do ritmo desdobramento/retraimento/condensação do processo do contato. Eventualmente potencializa o momentum da interpretação e do desdobramento. Ou atua seletivamente, evitando a atualização/desdobramento de possibilidades/contato insignificantes, desinteressantes, inconvenientes, dolorosas, perigosas…
Às vezes mesmo, a possibilidade tem efetivamente força de possibilidade, mas vem de bunda… Ou é feia, ou é doída, doída, sofrida… Às vezes insuportavelmente… Às vezes ela assusta e amedronta… nas implicações do ser outro que ela traz, na atualização de finitudes e sofrimentos (ainda indizíveis) que contém e implica, na força da novidade que carreia… Ou seja, a atualização e desdobramento da possibilidade pode exigir tempo de elaboração…
A bem da verdade, não existe possibilidade atualizada que não atualize ou possibilite, também, a ato ação, a atu alização de um término, de um final, de uma finitude, de uma “morte”, ou mesmo uma Morte mesmo…
No final, existe sempre a possibilidade da força, da alegria. Mas, no meio, às vezes, é como “cagar um osso atravessado…” Ou, talvez pior, abrir a porta, dar força, “dar luz a cego”, para um sofrimento indizível, intolerável… indesejado, para uma morte não querida, resistida, amaldiçoada, para a qual não se está ainda pronto.
A evitação significa um afastamento da concretude da vivência, e da atu ação de ser no mundo. Significa a abstração desta vivência, pelo privilegiamento da consciência reflexiva, teórica, conceitual, onde nos refugiamos da ameaça do desdobramento da possibilidade, do contato, de que estamos já grávidos e incumbidos, incubados. A evitação é abstração da vivência de ser no mundo, do contato e seu desdobramento, pelo privilegiamento da dessensibilização da fronteira do possível, e pela opção pelo reflexivo, deliberado, arbitrário, habitual, mecânico, ao mesmo tempo em que o corpo retrai-se e fragmenta-se do mundo que lhe é indissociável…
A Evitação eventual do Contato, do desdobramento, a evitação da atualização, das possibilidades de ser, pelo afastamento do modo de ser da vivência da ato ação das possibilidades de ser do ser no mundo, não são, assim, sem sentido, ou inorgânicas… Fazem parte natural da saúde da gente… Permite-nos o repouso, ou evita o desdobramento do contato, a atualização prematura ou mesmo indesejada, ou indesejável, de possibilidades de ser… Ou susta o processo assustado do desdobramento de uma possibilidade de ser, para potencializá-lo. Ou dá um tempo, por uma questão de timing…
É preciso dar um tempo, e a evitação eventual sai do ‘tempo’, e serve a esta função, através do afastamento da vivência fenomenal, pré-reflexiva, da atualização e desdobramento da possibilidade de ser do contato no ser no mundo: o mero sustenido do contato, e do seu desdobramento, potencializa este desdobramento, e configura-se como arte do contacto, e da atualização do possível… Dá-se pela saída, retirada (às vezes até como fuga, saudável), do seu desterritório: especificamente o ser no mundo de sua vivência, e da ato ação das possibilidades de seu pré-ser-se. Pela abstração deles.
Na abstração da vivência do ser no mundo, e do inerente processo de ato ação das possibilidades de seu pré-ser-se, na abstração da integração e da integridade corpo/mente, self/mundo externo, encontramo-nos no abstrato, abstraído, deles. Ou seja, no sem-corpo, sem-vivido, sem-sentidos, sem-ação, sem-possibilitação, sem-ato ação, atualidade sem-atualização. (E há quem ainda queira, sobre tudo, a Ciência e a Técnica…).
Estamos no reflexivo, na reflexão, na teorização, na conceituação, na ekstase, stase, estagn ação da eksistencia. Ou no cotidiano do mecanicismo do comportamento, habitual, mecânico, padronizado e previsível, sem ato ação, sem atu aliz ação, sem ação. Que, como momento rítmico da existência, como momento processual… faz parte…
Como momento do ritmo da existência, é aí que vivemos a nossa cotidianidade normalizada, de que, também carecemos (mas sem exagero, né?). Ou é aí que nos refugiamos, que nos retraímos, e repousamos, do contato e de seu desdobramento. Que nos refugiamos e repousamos do assédio das possibilidades, que delas nos protegemos, que a elas regulamos, enquanto sujeitos, sujeitados (às vezes deliciosamente…), que delas protegemos o nosso mundo. Imaginemos, por exemplo, que temos a todo tempo a possibilidade de morrer… e a ela evitamos, e dela nos protegemos com os outros, e dela protegemos o nosso mundo com os outros…
Momentaneamente, assim, a interrupção pode atuar como sustação do contato, como sustação da atualização da possibilidade de ser, por uma questão de seleção, ou de momento oportuno, para, em seguida, enfatizá-la e efetivá-la, desdobrá-la, atualizá-la.
Sustém-se o contato — às vezes, assim, no mero e saudável susto do que ele implica –, saindo-se do âmbito do seu desterritório. Ou seja: saindo-se do âmbito próprio da vivência do ser no mundo, e da desdobração do pré-ser-se, possibilidade de ser, que lhe são inerentes. Eventualmente como recurso de potencialização desta desdobração, ou como pressentida inabilidade de lidar com o que ele implica, e dando-se tempo para a habilitação, no melhor dos casos; uma vez que o pré-ser-se é sempre já e inevitavelmente uma incumbência, um incumbido, um íncubo, uma prenhez. Que se pode, até a ferro e fogo, interromper, mas que não se pode extirpar, e que permanece, inclusive, na impregnação de sua interrupção, ou nos diversos níveis de sua ininterrupção, como pré-ser-se, pronto, como tal, a re-tornar e a rebentar…
Como tal, quando é o caso, pois, a interrupção do contato não evita o sofrimento da finitude, incubados, incumbidos, visceralmente já, em um pré-ser-se que já se é, como tal, naquilo que nos existe de mais inamovível.
Trata-se, nesse caso, do dilema que Nietzsche aponta — e que diante dele não vacila: entre sofrer de superabundância de forças de vida, ou de sofrer de uma falta de forças de vida:
Eu abençôo todo sofrimento, dizia Zaratustra, acerca do sofrimento inevitável…
A vida merece ser plenamente afirmada, mesmo quando ela é sofrimento, mesmo quando ela é finitude… E é esta afirmação própria da finitude, e do sofrimento que lhe são inerentes, como afirmação irrestrita da vida, mesmo no que ela tem de mais problemático, que potencializa o retorno da vontade, força, da possibilidade de ser, como vontade, força, da vida, atu ação do possível.
Na saúde, grande saúde, o desdobramento do contato/possibilidades de ser dominantes ao nível do ser no mundo, atualiza-se, mesmo após os momentos, estratégicos certamente, de afastamento. Assim, o contato e o seu desdobramento desdobram cíclica e periodicamente, ritmicamente, a possibilidade da vivência de ser no mundo que constantemente entranha-se, como um pré-ser, naquilo que somos. Alternativamente à mesmidade da cotidianidade de um sujeito e de um mundo, de uma mente e de um corpo constituídos, dicotomizados, e efetivamente passados, sempre em risco de aí encistarem-se.
Na saúde, a grande saúde, enfrentamos e afrontamos, heróica e naturalmente, inclusive, e em particular, o sofrimento e a finitude que nos estão incumbidos, incubados, na ato ação da possibilidade de ser. Desdobramos o contato como atualização, afirmação, de possibilidades de ser, dimensões inalienáveis de uma vida inalienável. Somos atores de um ser outro da possibilidade de ser, intérpretes da outridade de um possível ao qual podemos nos recusar, mas do qual já estamos grávidos.
E isto garante a força da vontade de outras possibilidades de contato e de desdobramento, a novidade, a força e o fluxo da existência, da criatividade, da auto-regulação e do ajustamento criativo.
Ritmo, é uma dimensão múltipla e crucial, crucialíssima, em termos de contato e de seu desdobramento. Na verdade, ritmo, precisão, sutileza, movimento pela linha de menor resistência…
“… e lá vou eu, gesto no movimento…” (Leminski).
O ritmo do desdobramento do contato e do retraimento. O tempo do adensamento das possibilidades e da sua madurez, os múltiplos ritmos da contactação, e do retraimento. E as múltiplas desrritmias, e disrritmias, do processo do desdobramento do contato e do retraimento… Todos eles fazem parte do processo do contato, e das dificultações e facilitações que este processo pode assim naturalmente implicar.
De modo que se afastar do contato, e do mergulho na efetiva ação de sua desdobração, faz parte, naturalmente, do movimento, do ritmo, do processo do contato. Assim como a sustentação sustenida, ótima, do silêncio imbrica-se com o som, e é natural elemento da música. Ou como na paquera a palavra (ação) inter dita, e intervivida, é sustenida, exatamente na curtição da alegria da exclusividade, e exclusivação, da movimentação e do inter jogo, do inter dito.
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Como atualização de possibilidade, ao nível da vivência de ser no mundo, o processamento do contato e do seu desdobramento pode ser habitualmente sustados, ou interrompidos, como estilo existencial.. Naturalmente, e ao ritmo organísmico da atualização das possibilitações, ou habitual e repressivamente.
Diferentemente da sustação rítmica e natural, diferentemente da interrupção, e mesmo abortamento, ou não escolha de possibilidades inoportunas, indesejáveis e/ou indiferentes, o contato, o processo do contato, pode ser interrompido regular e sistematicamente, por um estilo existencial habitual. Determinando um padrão pobre de atualização de possibilidades, e de criatividade, em particular num sentido existencial. Tendo como conseqüência uma baixa capacidade de ajustamento criativo, e de auto regulação organísmica. O desequilíbrio psicológico, configurando o que, não sem algum anacronismo, se chamava de neurose.
Como vimos, o processo do contato pode ser sustado e interrompido natural, com ampla reversibilidade, e saudavelmente. Não é o que ocorre na modalidade que ora tratamos de um estilo existencial de interrupção habitual do processo do contato e de seus desdobramentos.
Por medo, de um modo mais geral; por educação, melhor diríamos deseducação, por falta de repertório, por dificuldade de lidar com o novo, e com os sofrimentos que as finitudes que ele determina podem gerar, pode desenvolver-se um estilo existencial restritivo, ou mesmo avesso à atualização da força das possibilidades. Possibilidade que continuam a dar-se, inevitavelmente, como vivência pré-compreensiva, ao nível do ser no mundo. De modo que a atualização de possibilidades, o contato, meramente insinuados, são interrompidos ao nível da possibilidade da sua experimentação e interpretação, de um modo regular e habitual.
‘Inter-des-ditos’ — habitualmente, forçosamente, re-pressivamente , cronicamente, todavia (des-viados, na verdade…) — a possibilidade, o contato e os seus desdobramentos, rompidos, interrompidos, emperrados, empedernidos, vão se tornando cada vez mais mal-ditos. Cada vez mais ek-stagn-ados, como uma gangrenação do pré-ser-se, como uma gangrengrenagem da possibilidade de ser: de novos ser no mundo, de novos mundos, e possibilidades de ser, de novos sujeitos, de novos eus, de novos outros…
E causando estragos. Ao ser no mundo, ao sujeito, ao objeto, ao mundo, à consciência, ao corpo, ao self…
Em primeiro lugar, num mundo progressivamente estagnante, decaente, e difícil, a criatividade existencial, a capacidades para o ajustamento criativo, minguam proporcionalmente.
Investida na sustação, na ruptura e na interrupção de seus desdobramentos, a vontade, o querer, a força, da possibilidade de ser, inerentes ao ser no mundo, investem-se na dis-integração da possibilidade da integração e da integridade do corpo/mente, self/mundo externo, próprios à dimensão da vivência de ser no mundo. Investem-se na desorganicidade, ou na disorganicidade, na desorganização (de um corpo vivido erótica e criativamente); da consciência flexível e reversível à dimensão da ex-peri-ência ex-peri-mental da vivência de ser no mundo – não inteiramente consciente, mas poiética, geradora e regeneradora. Investem-se na hostilidade ao corpo, ao self e ao mundo, investem-se no ressentimento, na culpa, na difamação do vivido e do mundo.
E tendem a diferenciar-se e a progredir paulatinamente as partes partizadas, dissociadas, dicotomizadas; e, no limite, alienadas.
A mente, ou seja, a consciência reflexiva, teórica, conceitual, cada vez mais, abstrata e abstraída, reflexiva, teórica, conceitual. A ponto de poder constituir-se como veneno — um perigo a sua supervalorização, como diria Nietzsche… A consciência reflexiva, a mente, o mental, abstraídos da integridade e da integração da vivência de ser no mundo, distanciam-se, desintegram-se e disintegram-se do corpo, e do mundo.
O corpo que é vivido cada vez menos como vivido, e cada vez mais como objeto; ou como subjetivo, cada vez mais abstrato, cada vez mais abstraído da vivência e da vitalidade de sua espontaneidade de ser no mundo.
A mente, o mental, e o corpo, idealizado e/ou objetificado, des integram-se e dis integram-se do corpo vivido como tal na espontaneidade da vivência de ser no mundo.
O corpo torna-se cada vez mais objetivo, e objeto, não raro alienígena e alienado, nos momentos de maior afastamento. Cada vez mais sofrido e sofrente, na medida em que se extingue o seu exercício, eminentemente ativo em sua natureza fundamental. O corpo perde, progressivamente, a sua característica de totalidade ativa, ‘atu ativa’ e ‘totalizativa’, diferente da soma de suas partes, e se fragmenta partitiva e desengonçadamente. Corpo que perde o espírito da espontaneidade e da graça da movimentação de sua vivência de ser no mundo, cada vez mais ‘des animado’, mecânico, cada vez mais enrijecido, deserotizado, incômodo, culpado, doloroso, psicossomaticamente perturbado e sofrente.
Por outro lado, cinde-se e partiza-se a dialógica da integração intencionalmente vivida entre consciência e mundo.
À medida que a consciência retrai-se do mundo, num subjetivismo cada vez mais enclausurado, o mundo, na direção oposta, progride em sua objetivização, afastando e inviabilizando cada vez mais o intercurso erótico e poiético, criativo, do mim mesmo-mundo, no qual, certamente, o homem é a imagem e semelhança de Deus.
Conseqüentemente, a plasticidade do mundo, a possibilidade de sua plasmação, no âmbito poiético da dialógica eu mesmo-mundo do modo da vivência da vivência de ser no mundo, desaparece paulatina e concomitantemente. À medida que o mundo afasta-se da dialógica, e vai, cada vez mais, sendo vivido como mundo objeto, mundo objetivo, cada vez mais alienado e alienígena, cada vez mais impossibilitado e impossível.
Evidentemente que isto se dá em termos do mundo e dos seus seres, e em termos das pessoas do mundo.
Nesta tendência, o mundo, seus seres e situações, já não são mais vulneráveis à poiesis da criação. Constituindo-se o sujeito como vítima, ou como destrutivo algoz, de um mundo, e dos seres de um mundo, alienígenas e alienados.
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Padrão da habitualidade da evitação do contato, hipertrofia da mente e do mental, da deliberatividade e da arbitrariedade da consciência. Hipertrofia do habitual, hipertonia da deliberatividade e da muscularidade, tensão muscular, estereotipia, distúrbios na fronteira, distúrbio psicossomático. Impossibilitação do contato e da atu-ação da possibilidade de ser.
A questão problemática, pois, para a Gestalt Terapia, é quando o afastamento da vivência de ser no mundo, e das possibilidades e possibilitações que lhe são inerentes, o afastamento da vivência do pré-ser-se que se é, e de suas possibilitações, o afastamento do contato, deixam de ser reversíveis. Perdem a sua natural reversibilidade.
Com o desenvolvimento da tendência ao predomínio, progressivamente excludente, da mente e do mental, ao predomínio da consciência reflexiva, teórica, conceitual, abstrata, sobre a vivência. A perda da sensibilidade vivencial para a situ ação e para a ato ação de ser no mundo. O predomínio do comportamento, do habitual mecanizado, dessensibilizado e dessensibilizante da fronteira da possibilitação do ser no mundo; o corpo tenso e mecanizado. A desintegração e a disintegração corpo/mente, self/mundo externo, configurando-se como padrão habitual e modo de ser. Com a redução proporcional da capacidade para a criatividade existencial, para o ajustamento criativo, para a auto regulação organísmica e para o crescimento. E com a crescente hostilidade e violência contra o si mesmo, contra o corpo, contra o mundo e seus seres.
O problema para a Gestalt Terapia é, pois, o do congelamento do susto e da assustação da possibilidade, entranhada no contato. Pelo afastamento da vivência do desterritório que lhe é próprio: ou seja, o afastamento da vivência integrada de ser no mundo, de suas possibilidades e atualizações, de suas possibilitações…
Para a Gestalt Terapia, a questão problemática é quando a sustação da ato ação da possibilidade do contato perde regularmente a sua momentaneidade e potencialização de movimento de contactação. Quando a sua momentaneidade, o seu momentum, forçam-se e tendem para “baixo”, para o zero, para o nada, nihil… nihilização… nihilismo… Conduzindo à des-animação da vivência de ser no mundo, à des-animação do corpo vivido, de sua “mágica” inter-ação poiética com o mundo, conduzindo à prejudicação de seus processos organísmicos de auto regulação, e das possibilitações do seu ajustamento criativo, no emergido campo-organismo meio, oriundo, criado e recriado pelas possibilitações das ato ações das possibilidades da vivência de ser no mundo.
A consciência reflexiva determina-se pela deliberatividade, na verdade pela arbitrariedade deliberativa, em oposição à espontaneidade dialógica organísmica da vivência ‘ato ativa’ de ser no mundo. Na interrupção do contato a consciência reflexiva tende a distanciar-se, como sujeito, de um mundo que se objetiva cada vez mais, e do qual ela se ‘des integra’, e ‘dis integra’, distanciando-se cada vez mais, integrando-se de um modo cada vez mais problemático, cada vez menos orgânico, caso não possa reverter-se à vivência de ser no mundo.
Na dinâmica do contato/retraimento/adensamento da possibilitação do contato, este momento de reversão à vivência de ser no mundo é natural, e potencializa o contato e a atualização de possibilidades de ser.
Comprometida e prejudicada a reversibilidade e a dinâmica do ritmo entre o contato e o retraimento, o mundo objetifica-se progressivamente, na fragmentação, e afasta-se cada vez mais, tornando-se cada vez mais impossível, impossibilitado, alienígena, e progressivamente ameaçado e ameaçador, na medida em que vai sendo cada vez mais construído como tal.
Na irreversibilidade, o próprio corpo, distanciado do que originalmente é uma integração, desanimado de sua vivência enquanto integridade de vivência de ser no mundo, vê crescer o abismo e a desconexão entre ele e o mundo objetificado, mundo progressivamente em despossibilitação. Enquanto ele, originalmente ativo e criativo na integridade e na integração da vivência de ser no mundo, potente e dinâmico, progressivamente, igualmente, se despossibilita…
A experiência ‘da consciência’ perde-se da momentaneidade da integridade e da integr ação do ser no mundo, da vivência integrada corpo/mente, self/mundo externo, que lhe é própria, e é própria à momentaneidade do contato e do seu desdobramento, e não se oferece mais ao fluxo da espontaneidade dialógica do ser no mundo, e torna-se cada vez mais deliberada e arbitrária, tendencialmente compulsiva e histérica, cada vez menos espontânea, dialógica e vital.
Neste movimento, tendem, assim, a ser progressivamente dominantes, unilaterais, e irreversíveis, a consciência reflexiva, teórica, conceitual, com a sua deliberatividade e arbitrariedade compulsivas, teóricas e abstratas; o corpo voluntário e subjetivo (subjetado?), meramente voluntarioso e não espontâneo, e o mundo alienígena. O comportamento torna-se hegemônico, enquanto extinguem-se as possibilidades da ação, que atualiza possibilidades. No empobrecimento da movimentação do self que os integra na vivência de ser no mundo.
Num certo sentido, foi a isto que em Gestalt Terapia, ainda que um tanto quanto impropriamente, se chamou de “Neurose”6: A incapacidade para a auto regulação organísmica e para o ajustamento criativo no campo organismo-meio. Em função da soberania, no modo de ser, do corpo tenso, porque dissociado da vivência das possibilidades de sua ato-ação, indissociáveis e inalienáveis enquanto ser no mundo. A incapacidade para a auto regulação organísmica e para o ajustamento criativo no campo organismo-meio, em função da soberania do ser abstrato, abstraído, distanciado e excluído dos níveis mais básicos e viscerais de sua vivência de ser no mundo, e de suas possibilidades e possibilit-ato-ações (privilegiados no socratismo da cultura da Civilização Ocidental). Exatamente por isto, obsessivamente reflexivo, deliberado e arbitrário (decidindo reflexiva e arbitrariamente à revelia da espontaneidade vivencial das possibilitações do contato); a soberania do ser conceitual, do ser enclausurado na habitualidade do passado, exilado do possível.
A incapacidade, assim, para a auto regulação organísmica e para o ajustamento criativo no campo organismo-meio. A incapacitação para a vivência da espontaneidade de ser no mundo e da moviment ato ação de um corpo harmônico e efetivativo, de uma vivência de consciência poiética criativa. Em função da soberania, no modo de ser, da insensibilidade para a possibilidade, para a vivência do ser no mundo, para o contato do ser no mundo com seu possível. A incapacitação para o desdobramento de suas possibilidades, o desdobramento das possibilidades de um pré-ser-se ontologicamente inerente às possibilidades de ser humano, incubado e incumbido a cada momento na condição de ser humano.
A insensibilidade para a possibilidade de ser, e o mecanicismo gangrenengrenado de um ser desprovido de possibilidades. Que cada vez mais se abstrai e se esteriliza, se “purifica”, obsessivamente, obsessivamente se conceitua e conceitua os outros e o mundo, se reflete, se tensiona e enrijece, e, no limite, se vinga e se mata, e é querer matar tudo o que é vida e se move e é forte, e é espontâneo, e é bonito: tudo que é vida e pulsa com a prenhez do possível. Querer matar por que se é, em si mesmo, auto contraição, digo, auto contradição, do possível de que se é grávido inevitavelmente. Querer matar, basicamente, porque se é habitual e basicamente auto mortificação, passado. Incapaz e impotente para tornar-se o que se é como possível.
Não é outra a condição da “neurose” em Gestalt Terapia… Mas isso não tem nada a ver com neuro…
Existencialmente, o possível, dimensão ontológica do ser no mundo que é o humano, prescreveu-se, congelou-se. Re-premiu-se a vontade (força) do possível, pela re-pressão da espontaneidade do corpo e da vivência de ser no mundo. Em, e através de, uma consciência obsessiva e de um corpo progressivamente compulsivo, tenso e doentio. Através do comportamento compulsivo e excludente, de uma ato ação constipada, de um sujeito prepotente, de um corpo, de uma abstrata consciência, e de um mundo, alienígenas, desmembrados de sua vivência integrada e integrativa, possibilitativa, de ser no mundo.
Nietzsche7, no Zaratustra, comentando acerca do aprisionamento da vontade (da força) do possível, bastante pertinente à condição da “neurose” tal como é concebida pela Gestalt Terapia, observa:
Vontade — assim se chama o libertador e o mensageiro da alegria: foi isso que vos ensinei, meus amigos! Mas agora aprendei também: a vontade, ela própria, ainda é prisioneira.
(…)
‘Oh!, todo prisioneiro se torna louco! A vontade prisioneira liberta-se também pela loucura!
‘E a sua raiva é que o tempo não volta atrás; ‘Aconteceu’, assim se chama a pedra que ela não pode deslocar.
‘E, por raiva e por despeito, levanta pedras e vinga-se naquele que não experimenta como ela raiva e despeito.
‘Deste modo a vontade que liberta torna-se malfeitora: e vinga-se em tudo o que pode sofrer, pelo facto de não poder voltar atrás.
‘Isto, e somente isto, é a própria vingança: a antipatia da vontade a respeito do tempo e do seu “Aconteceu”.
‘Na verdade, a nossa vontade é habitada por uma grande loucura; e para maldição de tudo o que é humano, esta loucura aprendeu a ser espírito.
‘O espírito de vingança’ (…) e onde quer que tenha havido sofrimento sempre se tornou necessário um castigo.
‘Castigo’, na realidade é o próprio nome da vingança: simula uma boa consciência com uma palavra mentirosa.
‘E como há sofrimento naquele que quer, porque não pode querer voltar atrás, a própria vontade e toda a vida deveriam ser — um castigo!
‘E eis que as nuvens se acumularam sobre o espírito: até que finalmente a loucura proclama: “Tudo morre porque tudo é digno de morrer!”
‘E esta lei que quer que o tempo devore os seus filhos é a própria justiça: assim proclamou a loucura.
‘As coisas estão ordenadas moralmente segundo o direito e o castigo. Oh!, onde está a libertação do curso das coisas e do castigo da existência?’ — assim proclamou a loucura.
A seguir, Zaratustra reitera os seus segredos e os seus caminhos, na afirmação da vontade, na libertação do possível e da criação, e reitera a sua crítica a uma cultura ainda prisioneira da vontade negativa: do ressentimento e da culpa, do niilismo, pela repressão da vontade, e do possível.
(…) ‘o querer é um criador.’
Todo o ‘Aconteceu’ é um fragmento, um enigma, um terrível efeito do acaso — até ao momento em que a vontade criadora acrescente: ‘Mas foi assim que eu quis!
Até ao momento em que a vontade criadora acrescenta: ‘Mas é assim que eu quero! Assim que hei-de querer!
Mas alguma vez falou assim? Quando o fará? A vontade deixa de estar atrelada a sua própria loucura?
Tornou-se já a vontade o seu próprio redentor e mensageiro da alegria? Esqueceu ela o espírito de vingança e todo o ranger de dentes?
E quem lhe ensinou a reconciliação com o tempo e alguma coisa de maior que qualquer reconciliação?
A vontade que é vontade de poder deve querer alguma coisa de maior que todas as reconciliações: mas como o irá fazer? Quem lhe ensinou a querer restabelecer o passado?
Na sua forma criadora, livre de sua loucura vingativa e auto negativa, a vontade afirmada, a afirmação afirmada, é passagem para o futuro, é trans-form-ação do passado. É o querer que liberta. Senhora do acaso do limite, que pode recebê-lo, afirmá-lo e metabolizá-lo, no engendramento criativo e efetivo do futuro. Que pode não só engendrar este futuro com a digestão do acaso e dos sentidos e efeitos do passado, mas re-significar o passado, conferindo-lhe outros sentidos e outros efeitos. Sentidos e efeitos agora feitos e afeitos à força da vontade em sua afirmação.
De modo que o grande segredo da plasticidade do passado é a afirmação da vontade, a afirmação da força de ser, o tornar-se o que se é, re-tornar, e tornar o mundo. É a possibilidade de engendramento de novos sentidos e de novos efeitos do passado, de engendramento do futuro, a possibilidade de criação, e de engendramento dos filhos próprios desta criação, tendo como matéria prima o acaso e os consagrados sentidos e efeitos do passado. Porque são possíveis outros efeitos do passado, e um outro passado é passível de invenção e de desejo.
Todos os sentimentos em mim sofrem e estão prisioneiros: mas a minha vontade aparece sempre como libertadora e mensageira da alegria.
Querer liberta: tal é a verdadeira doutrina do querer e da liberdade (…)
Não mais querer, não mais julgar e não mais criar. Ah!, que esta imensa fadiga fique sempre longe de mim.8
O quadro típico da “neurose”, segundo a concepção da Gestalt Terapia de Perls9: propriocepção e percepção final subconscientes, hipertonia da muscularidade e da deliberatividade, perda da capacidade para o funcionamento espontâneo e para a auto regulação organísmica, incapacidade para o ajustamento criativo, dicotomização corpo/mente e self/mundo externo; A atuação atípica dos mecanismos de emergência, ao nível do que se entende por “fronteira de contato”, os chamados “distúrbios na fronteira”, os distúrbios psicossomáticos …, decorrem, no limite, da inter dicção da dimensão da vivência do possível e de suas atualizações na vivência de ser no mundo.
Interdição por e para uma consciência deliberada e arbitrária, por e para um corpo tenso e inativo (ainda que compulsivamente comportamental, eventualmente). Uma subjetivação e uma objetivação desmembradas, alienadas, da dimensão e dos momenta da ato-ação das possibilidades de ser no mundo. Ou seja, da interdição e interrupção do processo do contato, do processo do desdobramento de suas possibilidades como desdobramento das possibilidades inerentes à vivência de ser no mundo.
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Gestalt Terapia como hermenêutica experimental do contato (situação hermenêutica e condições da situação hermenêutica). Onto poiética experimental do contato.
O possível, o pré-ser-se-no-mundo, condensam-se e adensam-se no sustenido e no susto do contato; mesmo no congelamento do susto do contato. O possível, as possibilidades e as possibilitações do pré-ser-se do ser no mundo, o contato e o seu desdobramento, estão sempre e inevitavelmente acessíveis, impõem-se na vivência de ser no mundo; freqüentemente de um modo imperioso, mesmo, e em particular, na sua interrupção…
Para a Gestalt Terapia, a saúde reside fundamentalmente numa identificação com o self, numa identificação com a vivência do self de ser no mundo.
Isto significa dizer, que a saúde reside em uma identificação com o vivido de ser no mundo, pré reflexivo e pré-conceitual, como a nossa experiência mais substancial, fonte eksistencial de nossa subjetividade, e fonte efetiva das dinâmicas de nosso ajustamento criativo e de nossas auto regulações organísmicas.
Esta identificação com o self comporta os momentos naturalmente rítmicos de retração da vivência de ser no mundo, e a reversibilidade rítmica, entre as duas dimensões, guardada a valorização de nosso ser hermenêutico, em nossa vivência de ser no mundo.
Como vimos, nesta vivência de ser no mundo constitui-se o processo do contato, e o processo hermenêutico fenomenológico existencial de desdobramento do contato, como desdobramento (da compreensão do ‘logos’) das possibilidades de ser inerentes à vivência de ser no mundo (interpretação fenomenológico existencial).
Do ponto de vista da Gestalt Terapia, o vigor do desdobramento experimental das possibilidades de ser, o vigor do desdobramento do contato, é um sintoma, um critério e uma condição de nossa saúde.
De modo que são dimensões naturalmente inerentes da existência os momentos de afastamento, ou mesmo de sustação, do processo do contato, e os momentos de seu desdobramento. Mas a reversibilidade rítmica entre os momentos de retração, ou de sustação, e os momentos de ato ação, de ato alização, é naturalmente imprescindível à saúde. Da mesma forma que o vigor da disposição experimental de contactação, ou seja, o vigor de atu alização, de ato ação, das possibilidades vividas constituídas na momentaneidade pontual da dinâmica da vivência de ser no mundo.
Para a Gestalt Terapia, a fragilização e o comprometimento da saúde decorrem de um comprometimento desta identificação com o self como vivência mais substancial de nosso ser. Decorrem de um comprometimento da reversibilidade naturalmente rítmica entre os momentos de afastamento, ou mesmo de sustação, do processo contato, e os momentos do processo de seu desdobramento, de sua atu ação, de sua atu alização, como atu ação e atu alização das possibilidades de ser inerentes à momentaneidade da vivência de ser no mundo.
Assim, o sentido da estratégia da Gestalt Terapia é o de criar espaço, tempo, e condições, para o vivido da vivência de ser no mundo, na momentaneidade da atu ação, da atu alização de suas possibilidades vividas de ser e vir a ser, para que o cliente possa dar-se a eles.
O sentido da concepção e da prática da Gestalt Terapia, assim, é o da criação de um espaço, de um tempo, de condições, e de uma certa pareceirização, seja com o terapeuta ou com o grupo, para um privilegiamento inter humano das dialogicidades da vivência das possibilitações de ser no mundo. Para uma otimização do processo do contato e do seu desdobramento, para uma otimização do ritmo da reversibilidade entre os momentos de retração e sustação do contato e do seu desdobramento, e os momentos de sua ativ-atu-ação.
Interessa-nos que o cliente possa ter tempo, espaço e condições para entregar-se ao momentum vivido de sua atualidade e de sua atualização, de sua vivência de ser no mundo. De modo que possa interpretá-lo, ou seja, que possa ser intérprete (num sentido fenomenológico existencial) de suas possibilidades e possibilitações, de acordo com o modo próprio e pontual da configuração destas.
O sentido da Gestalt Terapia é, pois, o de uma hermenêutica (a arte da interpretação) fenomenológico existencial experimental do contato. Uma opção pela, e um privilegiamento ativos, da possibilitação da inter humanidade dialógica, do espaço e do tempo próprios da ontopoiese naturalmente decorrente do desdobramento (interpretação) fenomenológico existencial do processo do contato. Da atu ação, da atualização, das possibilidades de ser no mundo, por parte de cliente e terapeuta, no contexto terapêutico.
Neste sentido, convém mencionar que a Gestalt Terapia propõe-se como logos metódico o de criar condições para a afirmação da condição humana, na medida que10 o próprio ser no mundo é hermenêutico, na medida que sua própria eksistencia é interpretação fenomenológico eksistencial – mais ou menos artística, vale dizer. Na medida em que se gera e regenera através da ato ação, atualização, desdobramento (interpretação) de suas possibilidades de ser.
Como observamos, o contato, como o entendemos é a própria ato ação momentânea e monumentual da possibilidade de ser. Que pode ser sustada, eventualmente, ou de modo mais ou menos habitual, e crônico.
A interpretação, ousada, e naturalmente a/venturesca, artística, fenomenológica e existencial deste desterritório e tempo do vivido, da vivência, a interpretação ousada das possibilidades e possibilitações do ser no mundo – desdobramento das possibilidades do ser no mundo, desdobramento do processo do contato –, configuram o que entendemos como experimental, num sentido fenomenológico e existencial.
A Gestalt Terapia é, assim, uma abordagem eminentemente experimental, no sentido fenomenológico e existencial. É a prática de uma hermenêutica (“arte da interpretação”) fenomenológico existencial experimental das possibilidades de ser do ser no mundo, do contato.
Daí que o modo vivido da consciência (digamos) — e não o modo reflexivo, teórico –, o tempo e o espaço do vivido, da ruminação, e da ex-pressão, sejam as modalidades caracteristicamente privilegiadas da vivência no âmbito peculiar da Gestalt Terapia. Uma vez que é neste modo de ser que o possível é possível e se desdobra.
Assim, para o cliente de contato assustado, sustado, interrompido; o cliente de padrão mais ou menos eventual, mais ou menos habitual, ou situacional, de interrupção do processo do contato, processo de atualização de suas possibilidades de ser no mundo, o que o Gestalt Terapeuta pode oferecer, no âmbito de seu poder, de seu espaço, de seu tempo, de sua dialógica parceria inter humana, é a abertura e a eventual concentração, na sua interpretação (hermenêutica fenomenológico existencial) da vivência imediata de seu ser no mundo. E de atualização, ato ação, de suas possibilidades de ser. Com a coragem, ousadia, e mesmo audácia, experimental que tal empreitada solicita
De modo que a qualidade do trabalho gestalt terapêutico diz respeito, específica e propriamente, à constituição de condições de potencialização da interpretação da ato ação, projetação, das possibilidades de ser do ser no mundo. Ou seja, as condições efetivas da prática de uma hermenêutica fenomenológico eksistencial, experimental, no âmbito de sua vigência, digo vivência.
Para o cliente que desenvolveu um padrão mais ou menos crônico, mais ou menos eventual e situacional de interrupção do processo do contato, a Gestalt Terapia oferece assim as condições hermenêuticas experimentais de uma potencialização da ontológica ontopoiese experimental própria à ousadia do desdobramento do contato em suas possibilidades e possibilitações.
Se propomos para o cliente momentos de vivência de uma hermenêutica experimental das possibilidades e possibilitações de seu ser no mundo, vale dizer que é exatamente esta, igualmente, a disposição do terapeuta gestáltico, na dialogicidade da relação inter humana com o cliente, ao longo do processo terapêutico. A disposição do gestalt terapeuta é uma disposição eminentemente experimental.
Neste sentido, creio, teremos interpretado aqui uma cartografia, ainda que esquemática, da Gestalt Terapia em sua concepção original. Própria e especificamente fenomenológica e existencial.
Alguns aspectos são fundamentais, e carecem de uma maior problematização e formulação, no contexto específico da concepção e da prática da Gestalt Terapia. Quais sejam: o caráter do contato como hermenêutica fenomenológico existencial experimental; a situação e as condições desta hermenêutica fenomenológico existencial no contexto da prática Gestalt Terapêutica; a poiese, ontopoiese, constituinte desta hermenêutica. A natureza de seu caráter especificamente experimental, num sentido fenomenativo existencial. E o próprio papel do psicoterapeuta.
1 op. cit. pp. 147-99.
2 PERLS, Frederick s., HEFFERLINE, Ralph F, GOODMANN, Paul Gestalt Therapy. Excitement and Growth in Human Personality. New York: Penguin Books, 1969.
3 PERLS, F. S. op. cit pp. 320-78; p.353.
4 PERLS, F. S. op. cit. pp.299-319.
5 PERLS, F.S. op.cit. pp.467-500.
6 PERLS, F.S. op.cit. pp.267-98.
7 NIETZSCHE, F Assim Falava Zaratustra, Lisboa: Europa América, 1978. pp. 137-9.
8 NIETZSCHE, F. op cit. p 82.
9 PERLS, F.S. ibid.
10 HEIDEGGER, M. op. cit. pp.18-24.